Apologia da diferença

à parte

A GRADUAL transformação do mercado no lugar em que as empresas se digladiam para melhor ir ao encontro das necessidades do consumidor tem uma enorme influência no consumo de cultura.
A criação de todo o tipo de produtos é pensada a partir de estudos detalhados dos comportamentos dos indivíduos, tornando-se a experiência de consumo na satisfação de uma ideia (ilusória) de poder sobre a realidade.
O consumidor é soberano e é preciso satisfazê-lo, nem que para isso seja preciso mudar de ramo de actividade ou modificar toda a estratégia – se a finalidade de uma empresa é fazer dinheiro, pouco interessa como.
Esta aparente personalização do consumo, que no âmbito cultural se manifesta de forma clara em exemplos como o do Netflix ou Spotify (que alegadamente se adequam aos gostos dos seus subscritores), é encarada como um sinal de desenvolvimento e não parece ser questionada.
Esquecemo-nos, porém, que esta personalização acaba por despersonalizar o indivíduo, uma vez que o torna refém de uma oferta que é moldada a partir de uma conjugação de dados mais ou menos genéricos, e não de um conhecimento profundo das suas singularidades.
E, pior ainda, contribui para uma cada vez maior dificuldade em lidar com objectos difíceis, enigmáticos, que tenham sido pensados por alguém à sua maneira – e não à medida do gosto do público.
Este fenómeno, parece-me, está a dar cabo da curiosidade em relação ao outro, ao que causa desconforto, eliminando tudo o que pode ser uma experiência desagradável.
Porque é que havíamos de lidar com objectos que não foram pensados para nós, desenhados para nos satisfazer?
Na Companhia Mascarenhas-Martins temo-nos colocado muitas vezes esta questão porque partimos do princípio de que os objectos artísticos que criamos devem ser produzidos a partir do ponto de vista de quem os propõe e não do ponto de vista da satisfação dos espectadores.
É claro que quem propõe determinado espectáculo deseja, inevitavelmente, que o mesmo crie uma relação com aqueles que o vão ver. Mas tal como nas relações amorosas, este movimento só resulta se for recíproco.
Se para sermos amados temos de abdicar daquilo que somos, seremos ainda nós os seres amados, ou simplesmente uma adaptação ao que sabemos serem os desejos do outro, daquele que queremos que nos ame?
A adequação dos conteúdos ao consumidor implica, em maior ou menor grau, o abdicar do ponto de vista daqueles que são os seus responsáveis. Deste modo, a pouco e pouco, as práticas de consumo cultural passam a ser baseadas num olhar narcísico, ensimesmado, com cada espectador-consumidor a ver as suas convicções confirmadas pelos objectos que lhe chegam.
Talvez não seja por acaso que em todo o mundo surgem movimentos cuja ideologia se baseia na necessidade de eliminar, através do exercício do poder, tudo o que lhes seja oposto.
Ver o mundo pelos olhos dos outros é difícil. Implica suspender, por momentos, o julgamento. Por vezes abala-nos as convicções, interpela-nos, provoca-nos. Sofremos.
Mas será que não é o que desejamos secretamente: que os outros sejam o que são, que sejamos nós também o que somos, e que consigamos ter a coragem de nos amarmos a partir do reconhecimento de que nunca seremos iguais?

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